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O mundo das grandes inovações tecnológicas, dos avanços das pesquisas médicas e que já presenciou o envio de homens ao espaço é o mesmo lugar onde 1 bilhão de pessoas dormem e acordam com fome. Na era da corrida pela descoberta da vacina contra o HIV, a desnutrição ocupa o primeiro lugar no ranking dos 10 maiores riscos à saúde e mata mais do que a Aids, a malária e a tuberculose combinadas. O equivalente às populações da Europa e da América do Norte, juntas, está de barriga vazia. E um futuro famélico aguarda a raça humana. Em 2050, apenas por razões ligadas às mudanças climáticas, o número de pessoas sem comida no prato vai aumentar em até 20%. Os dados são do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA/ONU), fundado há 50 anos. Em comemoração a meio século de esforços ao combate à fome, a revista científica Nature desta semana traz um especial sobre o assunto, no qual especialistas alertam: não bastam ações emergenciais. É preciso investir em pesquisas que permitam o desenvolvimento sustentável da agricultura, tornando-a mais produtiva e menos cara. Não é uma missão fácil. A insegurança alimentar está ligada a questões políticas e econômicas, tanto quanto a tecnológicas e climáticas.“Os somális passaram duas décadas em guerra civil e encaram duas temporadas consecutivas de estiagem. O gado não resistiu e os grãos secaram. Então, agora, eles se veem diante de uma escolha terrível por causa da falta de comida: migrar ou morrer”, exemplifica Josette Sheeran, diretora executiva do PMA da onU, em um texto escrito para a Nature. Clamando que os governantes prometam que as pessoas “não vão morrer sob seus olhos”, Sheeran cita o programa brasileiro Fome Zero, lançado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003.“Lula deixou claro que lutar contra a fome seria sua prioridade ao dizer que, se no fim de seu mandato, todo brasileiro tivesse três refeições ao dia, teria cumprido a missão de toda uma vida”, recorda. Para Sheeran, o foco no acesso imediato à alimentação aliado a recursos que permitam o desenvolvimento econômico das famílias é uma das opções no combate à fome. “O Brasil era beneficiário do PMA nos anos 1990. Agora, é o nosso nono maior doador.”Para o queniano Calestous Juma, diretor do Projeto África de Inovação Agrícola da Universidade de Harvard, a biotecnologia é a chave para a prevenção da fome. Em números de famintos, o continente africano perde apenas para a Ásia e o Pacífico (578 milhões de pessoas), com 239 milhões de desnutridos crônicos. Juma, autor de um livro sobre o tema, lembra na Nature que a tecnologia é fundamental para que os países produzam mais e melhores alimentos, e com menos esforços.Segundo ele, sem os avanços na área da biologia molecular, as nações africanas “poderiam estar bem pior do que estão agora”. Sem a revolução verde, programa mundial iniciado na década de 1940 com o objetivo de produzir novas variedades de sementes, Juma calcula que a produção de grãos em países em desenvolvimento seria 23,5% mais baixa que a atual, e que os preços dos alimentos estariam até 66% mais altos. Ainda assim, não foi o suficiente para evitar um estado nutricional alarmante. “Aliadas ao crescimento populacional, questões relacionadas ao meio ambiente, como a degradação de ecossistemas e a alteração do clima, que leva a períodos mais prolongados de seca, dificultam a agricultura na África”, conta Juma, ao Correio.O especialista de Harvard acredita que as nações africanas devem se abrir mais para ferramentas biotecnológicas, como grãos transgênicos — um assunto ainda polêmico —, adotadas em poucos países do continente. Juma não é contra o uso da terra para o cultivo de outros produtos que não alimentícios, como o algodão, pois acredita que o dinheiro ganho com a venda da matéria-prima pode se reverter na compra de alimentos. O problema, aponta, é que mesmo nesses casos, há pouca exploração da tecnologia. Como exemplo, ele cita os pesticidas contra pragas que atacam os algodoeiros, ainda pouco eficientes na África.O queniano insiste na necessidade de mais pesquisas científicas visando ao aperfeiçoamento agrícola. Quanto mais variedades de alimentos, diz, menores as chances de se perderem safras. Outra questão importante, segundo ele, é o desenvolvimento de grãos resistentes a doenças. Juma conta que em Uganda, a banana, uma fruta muito consumida pela população local, é ameaçada por uma bactéria que causa mais de US$ 500 mil em perdas por ano. “Não há variedades de banana no país e não há formas para tratá-las quimicamente.Os cientistas ugandenses estão trabalhando no desenvolvimento de uma fruta resistente, a partir de genes da pimenta-caiena.” Para o especialista, a cooperação internacional é essencial no combate à fome. “As organizações internacionais precisam expandir o acesso livre a publicações científicas e ao desenvolvimento tecnológico”, diz.Também convidado a comentar os 50 anos do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas na Nature, o pesquisador Peter M. Rosset, do Centro de Estudo de Mudanças Rurais do México, declara que o “sistema global de alimentos está falido”. Com a falta de controle sobre os preços, a especulação da indústria faz com que alguns alimentos fiquem 300% mais caros, como ocorreu com o milho no México. Rosset é um ativista pelo direito à alimentação e defende que, sem a reforma agrária, a população mundial continuará nas mãos dos grandes produtores. “Hoje, paga-se mais por um café do que por uma banana”, lamenta Rosset. Diferentemente de Juma, ele não acha que são necessárias intervenções biotecnológicas para extirpar a fome. “Pequenos agricultores são muito produtivos e podem usar técnicas ecológicas”, diz. Dessa forma, quebra-se a dependência do petróleo e, consequentemente, contribui-se mais para frear as mudanças climáticas, pois ficaríamos menos dependentes de pesticidas e fertilizantes”, acredita.Ontem, o alto comissário para Refugiados, António Guterres, alertou o Conselho de Segurança da onU sobre a crescente ameaça à segurança e à paz internacional resultante das mudanças climáticas e sua relação com a imigração. Ele mencionou a diminuição das capacidades agrícolas de países em desenvolvimento e a disputa por recursos, como água e terra arável, como potenciais causas de conflito e deslocamento.Depois do Fome Zero, programa que integra várias ações, sendo a principal delas o Bolsa Família, 26 milhões de brasileiros saíram da linha da pobreza entre 2004 e 2009. Mas a meta de Lula não foi totalmente alcançada: 16 milhões ainda vivem abaixo da linha da pobreza, o que estimulou a presidente Dilma Rousseff a lançar, neste ano, um novo programa, o Brasil sem Miséria.
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